Fortaleza da Barra Grande, jóia maior da baía de Santos
H. S. Ivamoto, editor da Acta Medica Misericordiæ
Ancoradas no interior do estuário, defronte à Santa Casa da Misericórdia e às singelas casas da pequena e indefesa vila de Santos, as três belonaves fortemente armadas e os cerca de duzentos combatentes do corsário Edward Fenton deixavam a pacata população apreensiva. As notícias sobre as atrocidades praticadas cinco anos antes por Francis Drake, na costa do Pacífico, ainda estavam bastante vivas em sua memória.
A frota aportara a 16 de dezembro de 1583 alegando objetivos pacíficos de abastecimento e reparos tendo, contudo, requisitado forja e fundição para seu equipamento bélico. Braz Cubas, fundador da Misericórdia e da Vila, assim como outros líderes locais, amantes da terra e de seu povo, embora concordassem em fornecer víveres, eram unanimemente contrários à colaboração com armamentos.Com a morte de D. Henrique em 1580, o trono português passara a um neto de D. Manuel, Felipe II da Espanha, que em Portugal ficou conhecido como Felipe I. A Espanha, católica, era inimiga da Inglaterra e da Holanda, protestantes. Sob o reinado espanhol, as colônias de Portugal, inclusive o Brasil, tornar-se-iam-se alvos de invasores ingleses e holandeses.
Numa tarde quente daquele verão, José Adorno, o já octagenário porém ainda altivo e resoluto proprietário do Engenho São João, acompanhado de dois outros moradores, retornam à nau capitânea onde já haviam estado a convite. Devolvendo as belas peças de tecido com que haviam sido brindados, disse com firmeza, a Fenton, que a gente de Santos não se corrompia com presentes e não se entendia com reconhecidos piratas, aconselhando-o ainda a partir porque o Capitão-mor não permitia o seu desembarque. Na mesma tarde, o capitão espanhol André Higino e sua frota de três navios, integrantes da esquadra de Diogo Flores Valdez, alertado sobre a presença dos intrusos, fundeava próximo à costa sul, aguardando o anoitecer.
O luar daquela noite delineava os contornos enegrecidos dos montes aos lados da baía, como gigantes postados a guardá-la, enquanto as águas ondulantes refletiam sua luz prateada. Ao fundo, algumas fracas luzes identificavam as vilas de Santos e de São Vicente debaixo do céu estrelado. Cruzando a baía com agilidade, as silhuetas escuras e silenciosas das naus espanholas atingem o estuário e dirigem-se ao porto. Surpresos com a frota que avançava em seu encalço, os tripulantes de Fenton rapidamente levantam âncoras e rumam ao mar. No inevitável encontro trava-se sangrento e prolongado combate, após o qual um dos galeões ingleses é capturado enquanto os demais conseguem escapar.
A construção da Fortaleza
Com a artilharia do galeão apreendido, armou-se a fortaleza construída na ilha de Santo Amaro em 1584, à boca do estuário, pelo engenheiro genovês Giovanni Battista Antonelli. Na noite de 24 de dezembro de
A Fortaleza da Barra Grande foi reformada e ampliada no século XVIII pelo engenheirro militar francês Jean Massé. Durante a Revolta da Armada, em 1893, sua artilharia foi usada pela última vez, contra o cruzador República. Desativada em 1911 quando suas últimas baterias foram transferidas para o Forte de Itaipu, situada ao sul da baía, passou a ser usada como depósito e posto fiscal, depois como sede do Círculo Militar de Santos, seguindo-se um período de abandono e depredações. Os atuais habitantes da região recordam-se bem do estado deplorável e ruinoso a que ficou reduzida.
A restauração
Em setembro de 1993 foi firmado um protocolo de intenções pelo Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural, Prefeitura Municipal de Guarujá, Sociedade Visconde São Leopoldo e Universidade Católica de Santos. As duas últimas instituições eram representadas pelo Dr. Fúlvio Casal, diretor geral, e pelo Dr. Francisco Prado de Oliveira Ribeiro, reitor, que nomearam uma comissão de trabalho formada pelos Professores José Wilson Vasconcellos, Maria Helena Lambert, Carmen Lydia Dias Carvalho Lima e Elcio Rogério Secomandi. A cerimônia, realizada na capela da Fortaleza, foi testemunhada pelo Bispo Diocesano e Chanceler da Unisantos, Dom David Picão, pelo comandante da Primeira Brigada de Artilharia Antiaérea, General Edmundo Montedônio Rêgo e outras autoridades. A restauração foi executada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, atualmente responsável pela edificação, em projeto de Victor Hugo Mori e Antonio Luiz Dias de Andrade, com a colaboração da Universidade Católica de Santos, Prefeitura Municipal de Guarujá, Exército, Marinha, Polícia Militar, Emurg, Prodesan, Petrobrás e outras instituições.
A reabertura
A obra restaurada foi reaberta em cerimônia ocorrida em 21 de abril de 1997, tendo como padrinho o Professor Élcio Rogério Secomandi, que se destacara pelo entusiasmo, dedicação e pelo trabalho desenvolvido junto à comunidade militar de onde proveio. Participaram do evento autoridades eclesiásticas, universitárias, militares, judiciárias, políticas, culturais e um grande público.
A capela do conjunto foi presenteada com um magnífico mural de vinte metros quadrados pela família de Manabu Mabe - Vento Vermelho - a mais bela obra do falecido mestre, obra-prima que encerrou a longa e produtiva carreira artística internacionalmente reconhecida.
Para quem chega pelo mar, a orla da baía lembra uma tiara em que a fortaleza alva, cravada sobre promontório rochoso, destaca-se como sua jóia maior. Com a recuperação do precioso monumento, considerado o mais importante conjunto arquitetônico-militar do Estado de São Paulo, não apenas a memória e a arquitetura regionais foram beneficiadas e enriquecidas. Tornou-se um forte atrativo para incentivar o turismo histórico, esquecido na nossa região e que outras, com um passado menos rico que o da outrora Capitania de São Vicente, aproveitam com bons resultados.
Nossos cumprimentos aos restauradores, esperando que alguém com semelhante empenho e dedicação se interesse pela recuperação e inserção no roteiro histórico, cultural e turístico de outras relíquias, como o Engenho de São Jorge dos Erasmos, o Forte de Vera Cruz do Itapema, o Santuário de Santo Antonio do Valongo, a Estação Santos-Jundiai e a Casa do Trem Bélico.
A Fortaleza de Santo Amaro da Barra Grande, junto ao estuário, na baía de Santos
REF: IVAMOTO, Henrique Seiji . Fortaleza da Barra Grande, jóia maior da baía de Santos. A Tribuna, Santos, Brasil, p. B5, 19 fev. 2000.