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23/07/2006
Retratos das Misericórdias
Vento Vermelho na Barra de Santos

 

Vento Vermelho, mural de Manabu Mabe na fortaleza de Santo Amaro da Barra Grande.

 

Vento Vermelho na Barra de Santos

 

H. S. Ivamoto, editor da Acta Medica Misericordiæ

 

         O mestre da arte deixa seus sentidos ganharem total percepção da histórica Fortaleza de Santo Amaro da Barra Grande. O piso por onde caminha havia sido pisado há quatro séculos por soldados, nomes e faces desconhecidos. Impressiona-se com a espessura das paredes da Fortaleza, variando entre oitenta centímetros e dois metros, verdadeiras muralhas, aptas a suportarem as pesadas balas atiradas pelos canhões de belonaves inimigas e que haviam sido construídas com pedras, óleo de baleia e cal de sambaquis. Estes, antiquíssimos amontoados de ostras, crustáceos e ossos acumulados pelos primitivos habitantes, constituíam fontes calcárias orgânicas aproveitadas pelos colonos como cal e tinta em suas construções. Milhares dessas conchas milenares são vistas mescladas aos demais componentes nas paredes mais antigas da Fortaleza. Vazia e silenciosa, suas grossas paredes e a atmosfera tetrasecular provocam um sentimento de mistério e de respeito pela memória dos heróis anônimos que nela defenderam o solo pátrio.

 

Na capela

       Da única janela da capela, em sua parede esquerda, uma abertura profunda voltada para o norte, por onde Manabu Mabe vê o estuário de Santos, penetram os raios do sol naquele fim de março de 1997. Junto com a luz natural, a única então existente no local, entra a brisa fresca que passa pelo artista e se reflete na parede dos fundos da capela, onde fora convidado a deixar a sua arte pelo arquiteto do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Victor Hugo Mori. O vento talvez servisse para inspirá-lo na elaboração do mural com sua ampla mancha vermelha cortando a parede a partir da esquerda. Tocado pela beleza da Fortaleza, Mabe confidenciou à sua esposa Yoshino que se empenharia para deixar sua obra “em lugar tão maravilhoso!”.               

 

         O artista, enfermo, pintou a tela que serviria de modelo para o mural, vindo a falecer em setembro de 1997. O ateliê artístico Sarasá, especializado em restaurações históricas, iniciou, a convite do IPHAN, a laboriosa montagem do mosaico de vinte metros quadrados, utilizando cerca de 350 mil pastilhas de vidro em numerosas cores, formas e tonalidades, muitas delas trazidas do exterior. Segundo Mori, a boa vontade e o grande interesse na obra por parte da família Sarasá possibilitaram a sua confecção.

 

A batalha do estuário de Santos

        Desde 1580, com a morte de Dom Henrique, a coroa portuguesa ficara com Felipe II da Espanha, o Felipe I de Portugal, neto de Dom Manuel, o Venturoso. Os portos brasileiros, então sob reinado espanhol, seriam invadidos por ingleses e holandeses, inimigos da Espanha.

Em meados de dezembro de 1583, Edward Fenton, comandando três poderosas belonaves e duzentos combatentes, aporta no interior do estuário, à frente da Santa Casa da Misericórdia e das casas que compunham a pequena e pacífica vila de Santos, em busca de forja e fundição para suas peças de artilharia. Braz Cubas e José Adorno, veneráveis líderes da comunidade, que há quatro décadas haviam fundado a Misericórdia e a Vila, recusam-se a colaborar. Numa tarde quente daquele verão, temendo pela segurança de sua vila e de seu povo, pedem a Fenton que se retire.

 

Na noite enluarada daquele dia, três naus espanholas comandadas por André Higino, integrantes da esquadra do almirante Diogo Flores Valdez,  entram pelo estuário onde se encontram com a frota inglesa, travando prolongado e sangrento combate. Um dos galeões ingleses é apreendido e suas peças de artilharia são utilizadas para armar a Fortaleza da Barra Grande, construída em 1584 na ilha de Santo Amaro, à boca do estuário, pelo engenheiro genovês Giovanni Battista Antonelli.

 

       Em 1615, enquanto a Fortaleza trocava fogo com a poderosa armada holandesa comandada por Joris van Spielbergen, um deslizamento de terras no Monte Serrate, onde a população se refugiara, soterrou um grupo de invasores. O evento, atribuído a um milagre de Nossa Senhora do Monte Serrate, fez com que os atacantes batessem em retirada. A santa foi escolhida pelo povo como padroeira da cidade.

 

      Os provedores da Santa Casa e seus assistentes, voluntários eleitos entre os mais ilustres membros da comunidade, têm participado dos feitos de relevo na vida da capitania, da vila, da província e da região.

 

A inauguração do mural

       O mural mabeano foi inaugurado na tarde de 7 de agosto de 1999, em solenidade organizada pelo professor Elcio Rogério Secomandi, dedicado padrinho da Fortaleza, que não escondia seu entusiasmo com a magnífica aquisição. O bispo coadjutor Dom Jacyr Francisco Braido disse, durante sua benção, “que esta capela e obra sejam um significado da indicação que devemos viver”. Para o reitor da Unisantos, Francisco Prado de Oliveira Ribeiro, estava concretizada a abstração que faz a história. “Estamos festejando a junção da arte com a história”.

 

       No final da década de 1980, conta a professora Rosa Ferreiro Pinto, o também docente da Faculdade de Serviço Social, José Pinheiro Cortez, lançara na Unisantos a idéia de restaurar a Fortaleza, que visitava em suas caminhadas diárias até a praia de Santa Cruz dos Navegantes. O trabalho de restauração, ainda em curso, iniciado em 1993 sob a direção do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, do Ministério da Cultura, auxiliado pela Sociedade Visconde de São Leopoldo, Universidade Católica de Santos e Prefeitura Municipal de Guarujá e com colaborações do Exército, Marinha, Emurg, Prodesan, Polícia Militar, Petrobrás e outras entidades, evitou que a Fortaleza, que se encontrava abandonada e sofrendo constantes atos de depredação, fosse totalmente arruinada.

 

      Em sua obra A Morada do Ser, Conceição Neves Gmeiner, ao tratar da arte, afirma que “a questão da guarda da obra torna-se um problema do Da-sein, de como ele vive e con-vive com as manifestações do verdadeiro. A História da guarda das obras de Arte tem mostrado que nem sempre elas são de fato com-preendidas e guardadas. A salvaguarda da obra é a ativa tarefa do filósofo e do artista que, ao com-preendê-la, tornam-se por ela responsáveis”.

 

O Vento Vermelho de Mabe

      José Urbano de Araújo, dedicado encarregado de manutenção, que cuida diariamente da Fortaleza há dois anos e que já admirou o mural centenas de vezes, só ou com outros trabalhadores e visitantes, identifica nele uma santa, um cavalo, a lua, um tubarão, um pavão, um samurai, a cabeça de um cão, um cavalo marinho e outras figuras.

 

      Para nós, a obra de Mabe, que a intitulou Vento Vermelho, transmite as emoções vividas pelos envolvidos na batalha do estuário de Santos, que deu origem à Fortaleza. No alto, o fundo escuro com o círculo claro lembra a noite enluarada, enquanto o fundo escuro na parte baixa, as águas escuras do estuário. A grande mancha vermelha cortando da esquerda para o centro lembra o vento que impulsionava as belonaves, o calor da luta, o ânimo sangüíneo dos santistas e vicentinos, ingleses e espanhóis, o Vento Vermelho da batalha que arrebatou  o estuário naquela noite, no épico episódio da ainda incipiente vida da nação que se formava. Do centro à direita, figuras em múltiplas formas e cores transmitem a sensação de perplexidade provocada no espírito humano por toda e qualquer guerra. Por fim, mais à direita, as cores amenas e tranqüilas, trazem a sensação da paz que se seguiu à batalha e que a Fortaleza ajudou a manter.

 

       Como escreve a filósofa, ao abordar a hermenêutica na obra acima referida, “buscar a essência nos leva a investigar de onde pro-vém a obra de arte e também a investigar a sua origem. Quando se procura a proveniência da essência da Arte e da Poesia, chegamos ao artista e ao poeta que operam de determinado modo, que pro-duzem alguma coisa que chamamos Arte.”

        

A multiplicidade de estilos

        À primeira vista, a obra abstrata na capela da Fortaleza pode parecer uma quebra de uniformidade de estilo. Na realidade, a Fortaleza, cujo núcleo central foi construído de acordo com o maneirismo português e espanhol do século XVI, sofreu acréscimos nas épocas ulteriores, cada qual dentro do estilo arquitetônico do respectivo período, incluindo o barroco, o neo-clássico tardio e o contemporâneo, retratando  a dinâmica de sua história multisecular. Segundo Mori e Secomandi, o novo telhado, projetado pelos arquitetos do IPHAN, seguiu a concepção recomendada para a Fortaleza por um dos maiores arquitetos brasileiros - Lúcio Costa - com tirantes e vigas de um aço especial, assemelhando-se  a um guarda-chuva, protegendo as velhas paredes centrais enfraquecidas, sem, contudo, nelas se apoiar. O último acréscimo importante é o mural, dedicado à Vida, que deixa eternizado nesse recôndito cristão de recolhimento, oração e meditação, antiga Casa da Pólvora, o talento artístico brasileiro do final do século vinte.

 

        A Fortaleza da Barra Grande é um dos raros monumentos quinhentistas ainda eretos em solo brasileiro. Emoldurada pelo verde forte dos morros, o azul-celeste ao alto e o azul-turquesa  das águas da baía, a Fortaleza, alva e bela, forte e majestosa, ganhou uma das obras derradeiras de um dos mais renomados artistas do mundo contemporâneo.

 

A bordo do La Plata Maru

      Quando, em 1934, o La Plata Maru dirigia-se à entrada do estuário, o menino Manabu, junto à mureta do convés, olhava admirado para a majestosa fortaleza, primeira construção desta terra que saudava os imigrantes das várias nacionalidades ao chegarem ao porto de Santos. As mãos do menino, que viriam a lavrar o solo do interior paulista, algumas décadas depois projetariam a pátria que o acolhera em exposições realizadas em muitas metrópoles mundiais, onde receberia numerosos prêmios. Seriam também responsáveis pela bela tela da Organização dos Estados Americanos em Washington e dos imensos panos de boca, em seda, do Teatro de Tóquio e do Teatro de Kumamoto, este com duzentos metros quadrados.

 

       Aos seus dez anos, o jovem Mabe não poderia imaginar que, sessenta e cinco anos depois, esse talentoso brasileiro da distante província de Kumamoto iria deixar, na capela daquela bela e imponente fortaleza que passava diante de seus olhos, uma das últimas e mais significativas obras de sua vida.

 

REF: IVAMOTO, Henrique Seiji . Vento Vermelho na Barra de Santos. Acta Medica Misericordiae, Brasil, v. 3, n. Supl. 1, p. 17-20, 2000.



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