Rede Corporativa
, 05 de fevereiro de 2025.
01/12/1998
Volume 1 - Número 1
6. Cisticercose intraocular bilateral: relato de um caso

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Cisticercose intraocular bilateral: relato de um caso

Bilateral intraocular cysticercosis: a case report

Eduardo Alonso Garcia, Constantino Kader Conde
Serviço de Oftalmologia da Santa Casa da Misericórdia de Santos

Resumo

Relatamos um caso de cisticercose intra-ocular bilateral em uma paciente de 41 anos. O diagnóstico foi clínico, com confirmação por retinografia. A queixa principal era de diminuição da acuidade visual. O tratamento foi vitrectomia via pars-plana nos dois olhos, com boa evolução pós-operatória . A etiologia, o diagnóstico, a propedêutica, o tratamento e a profilaxia da cisticercose ocular, bem como a evolução das técnicas e métodos utilizados em todas as etapas foram avaliados e comparados com a opinião de diversos autores.

Descritores: Cisticercose. Vitrectomia.

Summary

A case of bilateral intraocular cysticercosis in a 41year-old woman is reported.The clinical diagnosis was confirmed with retinography. The main symptom was reduction in vision.Treatment consisted of vitrectomy via pars plana in both eyes, with good postoperative course. The etiology, diagnosis, semiology, treatment and prophylaxis of ocular cysticercosis as well as the evolution of the techniques and methods were analyzed and compared with the findings of various authors.

Key Words: Cysticercosis. Vitrectomy.

INTRODUÇÃO

 

Os relatos dos primeiros casos de cisticercose intra-ocular confundem-se com a própria história do fundoscópio, no meio do século XIX. Em 1829, Scholl & Soemmering descreveram um cisticerco vivo na câmara anterior do olho; Baum em 1838 relatou um cisticerco de localização sub-conjuntival; o primeiro caso de cisticerco intra-vítreo foi descrito por Von Graefe em 186614. Daquele tempo até nossos dias, muito mudou, mas permanece uma observação de Lech Jr.(1949): "Abandonar o olho portador de cisticercose à sua própria sorte é abandoná-lo a cegueira, se não a sua perda total".

Apresentamos um caso de cisticercose intra-ocular bilateral, comentando e comparando sua abordagem do diagnóstico ao tratamento , bem como as suas divergências e a evolução das técnicas empregadas.

RELATO DO CASO

A paciente, 41 anos, branca, compareceu ao Serviço de Oftalmologia da Santa Casa de Santos com queixa de diminuição abrupta da acuidade visual no olho direito há 3 dias. Ao exame, constatou-se: acuidade visual do olho direito, 20/100 e do olho esquerdo, 20/30. Fundoscopia indireta do olho direito mostrou hemorragia vítrea, retinite pigmentar extensa e vesícula esbranquiçada livre no vítreo. No olho esquerdo, coriorretinite temporal intensa, fibrose glial em foco temporal inferior, levantando suspeita de possível cisticerco sub-retiniano. A retinografia demonstrou um cisticerco com escólex evaginado livre no vítreo no olho direito. Além de eosinofilia, encontramos negatividade de achados dos exames proto-parasitológicos em 2 amostras, reação de fixação de complemento de Weinberg, teste de Elisa e radiografia de crânio.

Foi realizada vitrectomia via pars-plana através de método descrito por Suzuki16 , com fragmentação e aspiração do cisticerco e vitrectomia subtotal. O material aspirado foi encaminhado para exame histo-patológico, que se mostrou negativo pelo método de inclusão em parafina, provavelmente porque os fragmentos do parasita ficaram retidos no vitreófago.

No 7º dia pós-operatório o olho mostrou-se com vítreo limpo. No olho esquerdo visualizou-se um cisto livre no vítreo, provavelmente outro cisticerco.


Fig. 1. Cisticerco intra-ocular.

 

Realizou-se a retirada do cisto pela mesma técnica e enviou-se o material aspirado para exame histo-patológico, desta vez com todo o conteúdo do sistema de aspiração do vitreófago. Utilizou-se o método de fixação direta em lâmina, porém não foi possível visualizar fragmentos do cisto, apresentando um resultado negativo.

Realizado acompanhamento ambulatorial com corticoesteróide via oral e tópico, antibioticoterapia via oral e tópica, havendo boa evolução pós-operatória em ambos os olhos. A paciente teve alta em agosto de 1990 com manutenção da acuidade visual inicial.


DISCUSSÃO 

O Cysticercus cellulosae, fase larval da T. solium, apresenta-se como uma vesícula semi-transparente com aproximadamente 15 mm de comprimento por 8 mm de largura e forma variável.

O homem, ocasionalmente, atua como hospedeiro intermediário e adquire cisticercose por auto-infestação interna (vômitos, movimentos anti-peristálticos) ou externa (contaminação oral-fecal), e hetero-infestação (ingestão de água ou comida contaminada com ovos).

Os ovos alcançam o intestino delgado e, como no porco, os embriões atravessam a parede intestinal e através da circulação sangüínea ou linfática atingem os vários órgãos do corpo, onde se desenvolvem em verme encistado em 2 a 3 meses. Eles podem se desenvolver em qualquer órgão e seus efeitos dependem inteiramente do local8,13. A presença do cisticerco nos tecidos estimula uma reação inflamatória crônica e a formação de uma cápsula de tecido conjuntivo (ectocisto), que fica infiltrado com linfócitos, eosinófilos e células gigantes. Não é comum a reação agudizar e supurar na presença do cisticerco íntegro13.

Estatisticamente , a presença de teníase e cisticercose no mesmo indivíduo é rara segundo Lech Jr6 ( 25 casos em 111) , também relatado por Adam Neto1 ( 1 caso em 8 ). A bilateralidade da cisticercose intra-ocular é fato raro, como enfatiza Balakrishnan (1961)10 , embora Zlatar (1965) descrevesse um caso de cisticercose múltipla do globo ocular. Um estudo de 10 anos, realizado por Malik , Gupta e Choudhry avaliou um total de 110 pacientes portadores de cisticercose e constatou que este é mais encontrado nos tecidos subcutâneos do corpo (24,5%). O envolvimento cerebral esteve presente em 13,6% enquanto o envolvimento ocular ocorreu em 14 casos (12,8%) .

O diagnóstico é clínico, baseado na anamnese, biomicroscopia , transiluminação, oftalmoscopia direta e indireta. Quando o cisto está vivo e intra-ocular , o diagnóstico clínico de cisticercose pode ser feito pela observação oftalmoscópica, notando-se movimento característico do escólex14.

Os exames complementares incluem parasitológico de fezes, leucograma, que pode demonstrar eosinofilia, radiografia de crânio, reação de fixação de complemento de Weinberg que apresenta positividade em 73,2% nos casos oculares isolados1. A hemaglutinação indireta e a imunofluorescência indireta (Elisa), antígenos CC (Cysticercus cellulosae) , ESP (antígeno proteico do escólex) e suas frações ESP3, ESP4 e ESP7 com índice superior a 1/128, são outros exames empregados.

O exame anátomo-patológico demonstra uma cavidade cística com reação inflamatória na parede, tipo granulomatosa, organizada com linfócitos polimorfonucleares e infiltração plasmática celular com discreta presença de eosinófilos. O corpo da larva é caracterizado pelo seu lúmen tortuoso, ventosas e ganchos.

Assim como o caso relatado neste trabalho, outros autores também apresentaram casos com exames complementares normais, sem eosinofilia, proto-parasitológico negativo, radiografia de crânio normal, reação de Weinberg negativa, Elisa negativa1,4,6. A fotodocumentação foi realizada com retinografia (fig. 1) .

Várias têm sido as modalidades terapêuticas propostas para a doença. Assim, Andrade (1940) citou injeções de cálcio nos cistos, Belfort Mattos (1940) imaginou a destruição do cisticerco subretiniano através de diatermo-coagulação transescleral. A remoção cirúrgica transescleral do parasito subretiniano, após aplicação diatérmica transescleral foi sugerida por Queiroz (1945). Rocha e Galvão (1963) conseguiram destruir parasito subretiniano com menos de dois diâmetros papilares através da fotocoagulação com xenônio. Em 1969, Mais relatou sua experiência utilizando crio-sonda para remoção de cisticerco intra-vítreo. Mais tarde, Bonomo, Belfort Jr. , Imamura e Mello (1975) descreveram a técnica de fotocoagular o parasito utilizando concomitantemente agente imunosupressor com a finalidade de diminuir os efeitos decorrentes da desintegração. Recentemente, Suzuki (1978), Freitas & Paulino (1980), Justa (1984), Oliveira, Queiroz Neto e Sousa (1987) relataram utilização das modernas técnicas de vitrectomia na terapêutica da cisticercose intra-vítrea10.

Enquanto o parasita está vivo, induz a uma inflamação de leve a moderada, porém com a morte do mesmo, ocorre uma violenta reação inflamatória. A destruição do cisticerco, sem sua remoção do olho, por métodos como diatermia, fotocoagulação, ou irradiações geralmente resulta na liberação de toxinas e perda do olho. Embora a abertura da câmara anterior com retirada do cristalino para remoção do cisticerco seja descrita como método cirúrgico comum, a perda vítrea excessiva, incontrolada e a fragmentação do parasita sem sua retirada total são possibilidades distintas com estes métodos. A vitrectomia via pars plana mostrou ser o procedimento cirúrgico ideal nesse caso particular. A vitrectomia fechada conduz a uma cirurgia controlada com excelente visualização, e este local de entrada evita a remoção obrigatória do cristalino. Todas as partículas tóxicas e bridas vítreas devem ser removidas enquanto o cisticerco é aspirado, resultando num processo inflamatório mínimo, embora possa ser difícil cortar escólex do parasita4. Marback & cols. relatam que apesar das tentativas utilizando modalidades variadas de recursos terapêuticos, o prognóstico visual dos portadores de cisticercose intra-ocular permanece sombrio, face aos efeitos danosos produzidos pela presença do parasito e, mais acentuadamente, após sua desintegração no interior do globo ocular.

O praziquantel vem sendo utilizado no tratamento clínico da neurocisticercose. Tal droga atua positivamente como larvicida para o Cysticercus cellulosae e está indicada, sobretudo, em pacientes portadores de múltiplos cisticercos no parênquima cerebral de acordo com Castaño (1982) e Spina-França (1982). Assim , como larvicida, a droga não representa recurso terapêutico para cisticercose intra-ocular visto que o principal objetivo é justamente remover do interior do globo ocular o parasito vivo10.

CONCLUSÃO

A cisticercose ocular, embora considerada como tendo baixa incidência em nosso meio e com sintomatologia de moscas volantes e diminuição da acuidade visual, deve ser lembrada nas hipóteses diagnósticas para patologias extra e intra-oculares, principalmente na presença de cistos ou vesículas.

O tratamento é cirúrgico e deverá ser realizado imediatamente após o seu diagnóstico. O sucesso estará na dependência da localização do parasita, bem como da intensidade das reações inflamatórias existentes. Entretanto, a verdadeira arma para combater esta doença é sua profilaxia.

BIBLIOGRAFIA

  1. Adam Neto A, Setter, V: Cisticercose ocular: análise de oito casos. Rev Bras Oftal 1983; 42: 205-215.

  2. Bartholomew RS: Subretinal cysticercosis. Am J Ophthal 1975; 79: 670.

  3. Byes B, Kimura SJ: Uveitis after death of larve in the vitreous cavity. Am J Ophthal 1974; 77: 63-66.

  4. Hutton WL, Vaiser A, Snyder WB: Pars-plana vitrectomy for removal of intravitreous cysticercus. Am J Ophthal 1976; 81: 571.

  5. Justa V: Cisticercose ocular no Ceará. Arq Bras Oftal 1984; 47: 37-40.

  6. Lech JR: Cisticercose ocular. Arq Penido Burnier 8: 13-64, 1949.

  7. Mais F: A Criocirurgia na cisticercose ocular. Rev Bras Oftal 1969; 28: 9-103.

  8. Malik SKR, Gupta AR, Choudhry S: Ocular cysticercus. Am J Ophthal 1968; 66: 1168.

  9. Manshot WA: Intra ocular cysticercus. Arch Ophthal 80: 772, 1969

  10. Marback RL, Queiroz AC, Tapioca MES, Sá Oliveira GG: Cisticercose sub-retiniana bilateral e neuro cisticercose múltipla. Ação do Praziquantel. Rev Bras Oftal 47: 5-9, 1988.
  11. Rocha H, Galvão P: Caso de cisticercose sub-retiniano justa-papilar tratado com fotocoagulação. Rev Bras Oftal 1963; 22: 41-49.

  12. Sampaio MW, Alves MR, Azevedo ML, Kara José N: Cisticercose ocular. Rev Bras Oftal 1985; 44: 48-49.

  13. Sen DK, Thomas A: Cysticercus cellulosae causing sub-conjunctival abcess. Am J Ophthal 1969; 68: 714.

  14. Siva Reddy P, Satyendran M: Ocular cysticercosis. Am J Ophthal 1964; 57: 664.

  15. Soares EF, Monteiro RG: Uveíte anterior parasitária: Relato de um caso de cisticerco na câmara anterior. Rev Bras Oftal 1972; 31: 97-102.

  16. Suzuki H: Vitrectomia via pars-plana na remoção de cisticerco intra-vítreo. Rev Bras Oftal 1978; 37 : 95-100.

  17. Topilow HW et al: Bilateral multifocal intra ocular cysticercosis. Ophthalmology 1981; 88: 1166.

AGRADECIMENTOS

Ao Dr. João Carlos Grottone pela orientação e documentação fotográfica (retinografia ). Ao Dr. Angelo Sementilli pelo exame anátomo-patológico. Ao Dr. Wagner Ghirelli e Dr. Luiz Geraldo S. de Assis pela correção cirúrgica (vitrectomia pars-plana bilateral).

OS AUTORES: Médicos assistentes do Serviço de Oftalmologia da Santa Casa da Misericórdia de Santos e membros titulares da Sociedade Brasileira de Oftalmologia.

Endereço/address:

Dr. Eduardo Alonso Garcia
Avenida Ana Costa, 361, cj. 33
Santos, SP, CEP 11060-003 - Brasil

eduardo.garcia@lbm.com.br 

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